A tragédia lamentável que vimos recentemente no estado do Rio Grande do Sul gerou comoção em todo o país por conta das milhares de pessoas afetadas pelas enchentes, pela falta de planejamento urbano de governos e pelo descaso com o meio ambiente. A comoção gerou uma onda de solidariedade muito importante exemplar para momentos como esse, mas, infelizmente, também gerou uma propensão menor nas pessoas com relação à checagem de fatos que geralmente já é bem pequena.
E é assim que a fake news começa. Um episódio que ilustra bem o “segredo” desse fenômeno foi a disseminação nas redes sociais de que os governos estariam dificultando a entrega de doações às pessoas atingidas. Tudo começa com um fato verídico para que a fake news tenha alguma conexão com a verdade.
Alguns poucos caminhões foram multados por carregarem doações sem nota fiscal. Esse fato foi ampliado para gerar a “notícia” de que os governos estariam dificultando de forma deliberada a entrega das doações. Em seguida, apenas os civis seriam capazes de ajudar os outros civis a se recuperarem das enchentes, uma vez que os governos só estariam “atrapalhando”.
Embora estejamos a apenas quatro meses das próximas eleições, o senso comum segue acreditando que as fake news correspondem apenas a notícias falsas. Contudo, vão muito além disso. São uma anomalia e um fenômeno político levado a proporções inimagináveis graças às redes sociais. São criadas sob medida para perfis específicos da população. Portanto, ameaçam a Democracia assim como o voto de cabresto, a corrupção e a fisiologia. São uma leitura distorcida da realidade de forma proposital que atende a uma determinada agenda política.
Não há como um fenômeno do tipo surgir de forma natural. As fake news se enraizaram na sociedade brasileira em decorrência de uma crise nas instituições que assistimos se formar aos poucos.
Ela passa pela descredibilização articulada da política no contexto da avalanche de denúncias de corrupção, passa pela judicialização da política; pela queda juridicamente questionável de uma Presidenta; pela prisão e pelo ilegal impedimento de o político mais popular do país participar das eleições; pelo desastroso mandato presidencial entre 2019 e 2022, marcado pela pandemia, crise social e adoção de práticas muito pouco republicanas de boa parte do Congresso Nacional; que culminou com uma tentativa de golpe de Estado após o resultado das eleições de 2022. O próximo capítulo dessa crise será as eleições de outubro deste ano.
Não há como o tecido social de uma sociedade não ser abalado após passar pelos episódios que vimos nos últimos anos. É evidente que não se trata de um fenômeno exclusivamente brasileiro. Quando olhamos para o resto do planeta, enxergamos crises como a que elegeu Donald Trump nos Estados Unidos e Milei na Argentina. Quando olhamos para esses países, e também para o Brasil, é notório que cada vez mais as pessoas estão descrentes com a política.
E apenas alguém que ainda acredita na Democracia pode se questionar sobre quais interesses estão por trás de uma determinada fake news. Do contrário, a desconfiança abre caminho para a mentira. Mas como pedir confiança para uma população que muitas vezes é deixada às margens do Estado e para a qual as instituições não funcionam?
No ritmo atual, chegaremos às próximas eleições mais uma vez sem uma cultura de checagem de fatos e a mentira fará parte da disputa eleitoral. Essa é a anomalia. E a pergunta que fica é: a quem interessa as fake news? A desigualdade social será combatida no país e a Constituição Federal será cumprida por quem dissemina elas?
É uma questão de cidadania não aceitar o jogo da mentira. E é por isso que o tema das fake news necessita ser discutido com profundidade. Afinal, a solução para resguardar a Democracia é termos mais Democracia com mais pessoas participando do debate.
Do contrário, se a política é o terreno da mentira e da descrença, que diferença faz mentir ou falar a verdade? É nesse ambiente que vamos às urnas em outubro desse ano.
Antônio Carlos Souza de Carvalho é advogado, cientista político e sócio do escritório Souza de Carvalho Sociedade de Advogados. Trabalhou em diversas campanhas municipais, estaduais e presidenciais, com foco especial na regularidade e compliance dos contratos de eventos e publicidade de campanha.