O Brasil teve 2.203 conflitos no campo em 2023, o maior número já registrado desde 1985, quando começaram os levantamentos da Comissão Pastoral da Terra (CPT). No ano passado, os despejos judiciais no meio rural quase triplicaram e as violências causadas por agentes dos governos estaduais mais que dobraram, embora empresários e grileiros continuem liderando as agressões.
Os dados são do relatório “Conflitos no Campo 2023”, da CPT, divulgado nesta segunda-feira. A publicação destaca o número recorde de conflitos no campo no Brasil, que envolveram 950 mil pessoas no ano passado. Até então, a maior quantidade de ocorrências havia sido registrada em 2020, com 2.130 casos. A região Norte lidera com 810 conflitos, seguida pela Nordeste (665), Centro-Oeste (353), Sudeste (207) e Sul (168).
Do total de ocorrências, 78,2%, ou 1.724 conflitos, foram relacionados a disputas pela terra; 11,4% foram motivados pela água; e 10,4% tiveram relação com o trabalho. Com mais de 187 mil famílias atingidas, a quantidade de conflitos pela terra também é a maior da série histórica.
O estado que mais teve conflitos agrários foi a Bahia, com 202 casos. O Pará fica em segundo lugar, com 183 registros. Na terceira posição, vem o Maranhão, com 171 conflitos. Na sequência, Rondônia registrou 162 violências pela terra e Goiás ocupa o quinto lugar da lista, com 140.
“Desde 2017, estamos vivenciando um período de acirramento da violência no campo, que se intensificou durante o governo Bolsonaro e se manteve no primeiro ano do governo Lula. Esse período é marcado pela violência contra as comunidades na tentativa de expulsá-las do território, visando barrar a luta pela conquista de novas áreas”, avalia Andréia Silvério, coordenadora nacional da CPT.
Apesar do recorde de conflitos, as ações de resistência também se intensificaram. Foram concretizadas 119 novas ocupações e retomadas de territórios, um crescimento de 60,8% em relação a 2022. Um aumento ainda maior foi verificado na quantidade de novos acampamentos de posseiros e sem-terra, com 17, ou 240% a mais do que no período anterior.
A quantidade de violências perpetradas por agentes dos governos estaduais mais que dobrou em um ano, passando de 63 em 2022 para 132 em 2023. A maior parte envolveu ações policiais de intimidação armada e ameaças variadas, com 103 episódios.
Os estados de Goiás e Bahia estiveram à frente nesse recorte, seguidos por Mato Grosso do Sul, Tocantins, Maranhão e Rondônia. A CPT denuncia que esses governos têm intensificado a repressão policial contra acampamentos, assentamentos, comunidades quilombolas e terras indígenas.
No mesmo período, as violências causadas pelo governo federal caíram 27%, com 175 ocorrências em 2023, primeiro ano da gestão Lula. Elas chegaram a 240 no ano anterior, último do mandato de Bolsonaro.
Apesar dessa queda e da ampliação do diálogo do governo atual com os movimentos sociais, por meio da reestruturação de ministérios como o do Desenvolvimento Agrário, Direitos Humanos e Justiça e a criação do Ministério dos Povos Indígenas, a CPT avalia que “isto não se refletiu em avanços na conquista de direitos pelas populações camponesas e tradicionais, como a reforma agrária e a demarcação das terras indígenas”.
Ainda assim, os maiores causadores de violência no campo são fazendeiros, empresários e grileiros. Juntos, eles respondem por 59,9% de todos os conflitos por terras em 2023. Foram 495 causados por fazendeiros, 313 por empresários e 144 por grileiros.
As ocorrências de despejo judicial no campo dispararam 194% entre 2022 e 2023, passando de 17 para 50 casos concretizados, que desalojaram mais de 5 mil famílias. As ameaças de despejo tiveram aumento de 32,6%, com 183 registros em 2023, 45 a mais do que no período anterior, e deixaram 21 mil famílias sob a expectativa de não ter um local para viver.
De acordo com o relatório, a Bahia é líder isolada em número de famílias efetivamente despejadas, com 2,9 mil – mais da metade do total do país.
Segundo a coordenadora da CPT, o grande número de despejos nesse estado é decorrente da ofensiva contra os sem-terra. “É possível apontar também a recorrente violência contra comunidades tradicionais e povos indígenas, sendo a grilagem uma prática instituída através de esquemas que envolvem os órgãos de terras, cartórios e até mesmo o Judiciário, já há muitos anos denunciada”, afirma Silvério.
“Na Bahia se identificou uma forte articulação do movimento invasão zero, constituído majoritariamente por fazendeiros, grileiros e jagunços, que visa retaliar violentamente as novas ocupações e retomadas de territórios indígenas, a exemplo do que ocorreu na região sul do estado já em 2024, culminando com assassinato da liderança indígena Nega Pataxó”, complementa.
Quando o recorte é a quantidade de famílias ameaçadas de despejo, Rondônia assume o primeiro lugar, com 7,1 mil famílias, seguido pela Bahia, que tem 3,4 mil famílias nessa condição. Somados, esses estados concentram 48% da população ameaçada por despejos no campo.
A CPT atribui esse crescimento ao fim da suspensão de despejos coletivos, instaurado pela Arguição de Descumprimento de Poder Fundamental (ADPF) 828, que esteve em vigor entre 2020 e 2022. A medida tinha o objetivo de evitar impactos maiores da pandemia da covid-19 entre as populações vulneráveis.
Trinta e um assassinatos foram registrados em conflitos no campo no Brasil em 2023, o que corresponde a uma redução de 34% em relação ao ano anterior.
A situação, no entanto, não é uniforme. Na região da tríplice fronteira entre Amazonas, Acre e Rondônia, conhecida como Amacro, houve oito assassinatos, o mesmo número observado em 2022, sendo cinco causados por grileiros.
“Prometida como ‘modelo’ de desenvolvimento com foco na sociobiodiversidade, [a região de Amacro] tornou-se epicentro de grilagem para exploração madeireira e criação de gado, com altas taxas de desmatamento, queimadas e conflitos”, afirma o relatório.
Quando se analisam os assassinatos de mulheres no campo, a tendência é de crescimento. Sete mulheres foram executadas em 2023, 16,7% a mais do que no período anterior. Um dos casos que ganhou maior notoriedade foi o de Mãe Bernadete, líder quilombola morta a tiros em agosto passado, na Bahia.
Entre os conflitos pela terra, os indígenas continuam sendo a categoria que mais sofreu violências, com 470 ocorrências, ou 29,6% do total registrado em 2023. Também são o grupo mais assassinado no meio rural, com 45% do montante de vítimas.
Os conflitos que envolvem projetos de créditos de carbono, destinados a compensar as emissões de empresas poluidoras, atingiram 23 localidades diferentes naquele ano, implicando uma área de 9,7 milhões de hectares do território nacional. Pará e Rondônia concentram 94% desse total.
Grande parte dessas áreas, ou 88,4%, faz parte de terras indígenas. Em segundo lugar, aparecem as unidades de conservação, com 7,6%, e por fim os assentamentos (3,4%).