Antigamente, cursar Medicina era um chamado, uma missão. Os estudantes eram moldados nos corredores de hospitais, aprendendo diretamente com os pacientes, com os preceptores e com os desafios reais da prática médica.
Não havia glamour, não havia espetáculo. Havia trabalho duro, noites sem dormir, plantões exaustivos e uma satisfação genuína ao salvar uma vida ou ao conseguir um diagnóstico difícil. Hoje, esse cenário mudou – e não foi para melhor.
Atualmente, o curso de Medicina vem sendo reduzido a um espetáculo teatral, onde a aparência e as cerimônias superam a essência da profissão. A primeira mudança visível é a cerimônia do jaleco, que transforma um simples ritual de início de curso em um evento digno de uma premiação de Hollywood.
Os estudantes, antes de sequer tocarem um paciente real, vestem jalecos imaculadamente brancos em meio a discursos inflamados e produções profissionais de foto e vídeo. Tornou-se um evento de autopromoção, onde o simbolismo de um instrumento de trabalho foi transformado em um troféu de status.
Nos anos de formação, a superficialidade continua. Em vez de ver pacientes reais, muitos alunos são treinados em bonecos e simulações. O toque humano, a complexidade dos sinais clínicos e a experiência visceral de lidar com um paciente em sofrimento foram substituídos por manequins de silicone em salas climatizadas.
As faculdades, sem estrutura hospitalar própria, deixam os alunos deslocados, fazendo estágios superficiais e sem continuidade em unidades de saúde improvisadas. O estudante de Medicina, que antes acumulava plantões e experiências em enfermarias, hoje acumula selfies e postagens em redes sociais.
Salas de ambulatório com quinze a vinte alunos onde ninguém tem interesse em ouvir a história do paciente e é moldado a pedir vários exames antes mesmo de saber qual a queixa do paciente. Quer ser atropelado pelo diagnóstico de exames alterados ao invés de galgar e buscar os melhores exames para a queixa do paciente.
Não sabe o que é SOAP, anamnese, exame físico ou mesmo terceiriza a responsabilidade de uma anamnese e exame físico ao especialista, já que como generalista é apenas um ignorante com carimbo.
E o culto à superficialidade não para por aí. Agora há eventos para cada etapa do curso: festa de um terço de médico, festa de meio médico, ensaios de formatura antes mesmo do internato.
As aulas – que já não são tão bem conduzidas – são frequentemente ignoradas em nome de compromissos sociais. Os estudantes saem dos cursos mais preparados para organizar uma festa do que para interpretar um eletrocardiograma.
E quando chega o momento da formatura, o espetáculo atinge o auge. O que antes era uma cerimônia simples e solene, celebrando o fim de anos de trabalho árduo, agora virou uma produção cinematográfica.
Bandas famosas, salões luxuosos, festas que custam valores astronômicos – muitas vezes financiados pelos próprios pais – tornaram-se mais importantes que o próprio diploma. A glória efêmera da festa supera o peso e a responsabilidade de um CRM recém-emitido.
Esse esvaziamento da essência do curso reflete diretamente na qualidade da formação médica. O despreparo é evidente.
Os jovens médicos chegam aos hospitais sem saber interpretar um raio-X básico, sem confiança para conduzir um atendimento inicial de emergência e sem a vivência necessária para dialogar com pacientes e familiares. O raciocínio clínico, outrora moldado pela prática constante, foi substituído por protocolos decorados e pela dependência de aplicativos e ferramentas digitais.
Vivenciamos a medicina por osmose, a mais perigosa de todas. Baseada no que escutamos e não no que deveríamos ter lido ou estudado. O storytelling da medicina seduz as mentes fracas e oportunistas a criar na sua pós verdade, já que a medicina tradicional não gera curtidas, compartilhamentos ou status na nova ordem mundial. Estamos embarcados no baleeiro Pequod em busca de uma baleia branca inexistente e cegados pela psicose, destruindo tudo ao nosso redor.
Formar-se em Medicina não é sobre festas, jalecos ou fotos profissionais. É sobre ética, dedicação, empatia e capacidade técnica. O jaleco branco não é símbolo de status – é símbolo de responsabilidade.
Os estudantes precisam voltar aos hospitais, aos leitos, às enfermarias. Precisam aprender com o paciente, e não com um boneco de plástico. Precisam reverenciar o conhecimento médico e não o brilho artificial de uma formatura luxuosa.
A medicina precisa voltar a ser uma profissão – e deixar de ser um espetáculo. Porque quem sofre com essa degradação não são apenas os médicos despreparados, mas também os pacientes que confiam suas vidas a eles. E isso, mais do que um erro, é uma tragédia.
Terminar o curso de Medicina deveria ser o início de uma jornada de especialização e prática médica aprofundada. No entanto, para muitos médicos recém-formados, a realidade que os espera é um campo minado de dificuldades, frustrações e atalhos perigosos.
A competição acirrada por uma vaga em uma residência médica de qualidade, somada à proliferação de cursos de especialização de final de semana, criou um cenário onde a busca por uma formação sólida deu lugar a soluções rápidas e superficiais.
O médico recém-formado, após seis anos de curso e um internato muitas vezes desorganizado e deficiente, se depara com uma barreira praticamente intransponível: o processo seletivo para residência médica.
As melhores residências, em hospitais renomados, têm taxas de aprovação ínfimas, com vagas disputadas por milhares de candidatos. O preparo exigido para essas provas é enorme – cobrindo desde raciocínio clínico avançado até interpretação detalhada de artigos científicos.
O problema é que esse preparo requer tempo e, principalmente, uma base sólida adquirida ao longo da graduação – algo que muitos médicos não tiveram. Com cursos cada vez mais voltados para simulações, com pouca vivência prática e sem contato direto com pacientes em ambiente hospitalar, o recém-formado se vê em desvantagem desde o ponto de partida. É uma corrida onde alguns largam metros atrás da linha inicial.
Diante dessa pressão e das poucas vagas disponíveis, surge o mercado paralelo das especializações de final de semana. Cursos rápidos, muitas vezes a distância, oferecem ao médico frustrado um caminho alternativo para se tornar “especialista” sem a necessidade de passar por um processo formal de residência. A promessa é sedutora: um certificado em poucas semanas, com carga horária baixa, conteúdo superficial e pouca ou nenhuma prática clínica.
Esses cursos exploram o desespero e a necessidade de uma rápida inserção no mercado de trabalho. “Curso de Ultrassonografia em 5 dias”, “Especialização em Dermatologia com prática online”, “Estética Médica com certificação em dois finais de semana” – o mercado de cursos virou uma máquina de títulos que, na prática, não têm valor reconhecido pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). Vinte e quatro finais de semana a distância para uma especialidade é uma boa forma de se enganar.
O recém-formado, muitas vezes endividado após anos de faculdade particular e formaturas luxuosas, cai na armadilha. Termina o curso com um título que não pode ser registrado no RQE (Registro de Qualificação de Especialidade). Sem o RQE, o médico não pode se apresentar legalmente como especialista. A situação gera um paradoxo: ele tem o conhecimento teórico superficial, mas não a autorização oficial para exercer aquela especialidade.
E o pior: mesmo que consiga exercer essa “especialidade” de maneira informal, o despreparo clínico acaba cobrando seu preço. Sem a vivência hospitalar, sem o aprendizado prático sob supervisão, o médico que tenta se aventurar em uma área especializada sem o devido treinamento está colocando não só sua carreira, mas a saúde do paciente em risco.
O resultado desse ciclo é um mercado inflacionado de médicos “especialistas” sem registro, sem capacitação sólida e sem o embasamento técnico necessário para lidar com casos complexos. Os pacientes, por sua vez, tornam-se vítimas dessa degradação: tratamentos inadequados, diagnósticos errados e uma queda geral na qualidade do atendimento médico.
O caminho para quebrar esse ciclo é claro, mas difícil: valorização das residências médicas, ampliação de vagas em hospitais-escola e fortalecimento das bases de ensino médico durante a graduação. Os cursos de especialização rápida precisam ser regulados e enquadrados dentro de parâmetros rígidos de qualidade e validação pelo CFM.
A medicina não é uma profissão para atalhos. Ser especialista exige prática, supervisão e tempo. O médico recém-formado precisa entender que o verdadeiro valor da especialização está na formação técnica, na prática supervisionada e na capacidade de resposta diante de um quadro clínico real – e não em um diploma conquistado em um fim de semana.
Filipe Prohaska é médico infectologista (CRM/PE 16.738 / RQE 1.338), professor universitário.