A Justiça do Maranhão concedeu, em decisão provisória, a guarda unilateral de uma menina de dois anos e oito meses ao pai, o empresário João Felipe Miranda Demito — réu em processo por violência doméstica movido pelo Ministério Público do Tocantins. A medida, expedida pela 3ª Vara da Comarca de Balsas, acendeu um debate sobre a atuação do Judiciário em casos envolvendo mulheres em situação de vulnerabilidade e provocou indignação pública após a divulgação de vídeos da mãe da criança, a engenheira Paula Thereza Gewehr.
Segundo a decisão judicial, a guarda foi transferida ao pai com base em supostos indícios de alienação parental cometidos pela mãe. Paula, no entanto, contesta veementemente essa alegação.
“Nunca impedi o genitor de ver a filha. Temos acordos extrajudiciais de convivência, inclusive com visitas alternadas e ligações semanais por vídeo. Não há, em nenhum lugar, qualquer indício de que eu tenha negado o direito de convivência”, afirma em um dos vídeos publicados nas redes sociais.
Histórico de abusos
Os relatos de Paula descrevem um relacionamento marcado por abuso psicológico, controle e coerção. Segundo a engenheira, o ex-companheiro controlava suas roupas, a impedia de frequentar a academia, proibia consultas com psicólogos e até limitava o contato com a própria família.
“Eu não podia usar legging, batom vermelho ou esmalte vermelho porque era ‘coisa de rapariga’”, relatou. “Ele trocou o chip do meu celular e só eu podia compartilhar meu novo número com autorização. Fiquei dois anos sem redes sociais. Me afastei de amigos, da minha família, de mim mesma.”
Paula afirma que foi coagida a engravidar após seu anticoncepcional ser descartado por João Felipe.
“Combinamos que eu pararia com o remédio se ainda estivéssemos juntos no meu aniversário. Naquele dia, antes dos parabéns, ele me cobrou a ‘palavra de mulher’. Joguei fora. Seis dias depois, engravidei.”
A filha nasceu nos Estados Unidos por escolha do pai, que também teria decidido que o parto fosse normal. Segundo a mãe, ela passou 15 horas em trabalho de parto aguardando a médica chegar ao hospital, porque o empresário não permitia que um médico homem a atendesse. Após o parto, a mãe de Paula retornou ao Brasil sem conseguir pegar a neta no colo, por proibição do genro.
Medo e silêncio
Após o nascimento, Paula relata que deixou o relacionamento em segredo, com ajuda da família.
“Saí com três fraldas, um pijama, uma caixa de papelão. Nem mala eu levei. Fui para Goiânia. Fiquei três meses com roupas emprestadas, até conseguir estabilidade em Balsas, onde fui morar com minha mãe. Nunca tive paz. Ele dizia: ‘Vou gastar tudo que tenho para te tirar a Aurora’. E está fazendo isso.”
A primeira denúncia de violência doméstica foi feita em Araguaína (TO), em abril de 2023. Na ocasião, Paula registrou um boletim de ocorrência com relatos de humilhações, manipulação, ameaças e perseguição. A engenheira também declarou que foi impedida de manter vínculo com a própria mãe e que vivia sob constante vigilância.
Por medo de retaliações, não pediu abertura imediata de inquérito. Meses depois, ao perceber que as intimidações persistiam, fez novo registro no Maranhão, que foi arquivado. Paula então formalizou a denúncia no Tocantins, que culminou em inquérito conduzido pelo Ministério Público. O processo criminal, ainda em fase inicial, aponta que João Felipe causou dano emocional à companheira com o objetivo de controlar suas ações, caracterizando violência doméstica psicológica. A audiência do caso está prevista apenas para abril de 2025.
Decisão e suspeitas
Em meio ao andamento do processo criminal, a Justiça maranhense decidiu em favor de João Felipe quanto à guarda da filha. A defesa do empresário sustenta que a decisão foi embasada exclusivamente nos autos e nega qualquer interferência. “As decisões foram tomadas com base na legislação vigente e nas provas apresentadas”, afirmou a advogada Fabiana Castro.
Paula, por outro lado, denuncia influência política e jurídica. João Felipe é filho de um ex-prefeito de Balsas, e uma das advogadas de sua equipe, Edmee Maria Leite Froz, é esposa do desembargador Froz Sobrinho, do Tribunal de Justiça do Maranhão.
“Como uma mãe, que cuida da filha desde o nascimento, perde a guarda para um pai que responde por violência contra ela? Que Justiça é essa?”, questiona.
A Procuradoria da Mulher da Assembleia Legislativa do Maranhão manifestou solidariedade à engenheira. Em nota oficial, o órgão afirma: “Pugnamos pela sensibilidade dos senhores desembargadores para que reavaliem este processo e possam tomar uma decisão mais justa que não cause trauma irreparável”.
A liminar e o novo julgamento
A decisão da Vara de Balsas chegou a proibir que Paula tivesse qualquer contato com a filha, exceto por telefone. Apenas em julho, durante o recesso escolar, ela poderia vê-la pessoalmente — desde que não houvesse nova contestação judicial. A mãe recorreu ao Tribunal de Justiça em São Luís, onde conseguiu, por meio de agravo com tutela recursal, uma liminar suspendendo os efeitos da decisão de primeiro grau. Por ora, a criança permanece com a mãe.
“Não é uma luta recente. Já são dois anos separada e minha vida segue sendo controlada por decisões externas. Eu só quero criar minha filha em paz. Nada mais.”
Procurada pela reportagem, a defesa de João Felipe Miranda Demito se manifestou por meio da advogada Fabiana Castro:
“Nos últimos dias, informações imprecisas têm sido divulgadas, gerando especulações sobre um caso que deve ser tratado com a seriedade que merece. Portanto, presto os devidos esclarecimentos dentro dos limites legais, preservando o sigilo processual e priorizando o melhor interesse da criança.”
Sobre a acusação de interferência na Justiça, a advogada aponta que “todas as decisões foram baseadas nos autos do processo, nas provas apresentadas e na correta aplicação da legislação vigente, sem qualquer interferência externa. As alegações nesse sentido devem ser formalmente comprovadas nos meios legais adequados”.
Veja o vídeo da defesa
Enquanto a mãe clama por Justiça e denuncia o peso de nomes e sobrenomes no andamento do processo, o caso se desenrola nos corredores do Judiciário, com o destino de uma criança sendo decidido entre sentenças e acusações. A pergunta que ecoa, entre as vozes que se erguem por Paula, é direta e profunda: até onde vai o poder de um homem diante da fragilidade de uma mulher que grita — não por si, mas pela filha que quer proteger?