Um inquérito conduzido pela Polícia Federal e analisado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) expõe um esquema milionário de desvio de recursos públicos destinados à compra de cestas básicas durante a pandemia de Covid-19 no Tocantins. O documento, relatado pelo ministro Mauro Campbell Marques, descreve a atuação de políticos, servidores e empresários, e aponta o envolvimento direto do governador Wanderlei Barbosa e da primeira-dama, Karynne Sotero.
As investigações revelam que a Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social (SETAS) foi o centro da operação. Por influência política do então vice-governador, a pasta concentrou a maior parte dos recursos da pandemia. Emendas parlamentares também eram redirecionadas para reforçar o caixa do esquema.
O inquérito descreve a ação de quatro núcleos articulados:
Político – liderado por Wanderlei Barbosa, Karynne Sotero e deputados estaduais que destinavam emendas.
Servidores – responsáveis por fraudar licitações, direcionar contratos e atestar recebimentos falsos.
Empresarial – composto por empresas de fachada, muitas em nome de “laranjas” beneficiários do auxílio emergencial.
Financeiro – operadores que movimentavam grandes somas em espécie e realizavam depósitos fracionados em favor do governador.
O resultado, segundo a Polícia Federal, eram “cestas básicas de papel”: contratos firmados em valores milionários, mas com entregas parciais ou inexistentes.
O inquérito rastreou transferências e saques que sustentam as suspeitas. A empresa MC Comércio de Alimentos EIRELI sozinha repassou R$ 521 mil a Paulo César Lustosa Limeira, operador do esquema e ex-marido da primeira-dama.
No total, Lustosa recebeu R$ 1,35 milhão entre 2020 e 2022, realizando saques de R$ 665 mil em espécie. Para os investigadores, a manobra tinha o claro objetivo de ocultar a origem ilícita do dinheiro.
Parte desses valores, afirma a PF, foi canalizada para a construção da Pousada Pedra Canga, em Taquaruçu, registrada em nome de Rérison Leite, filho do governador. Conversas interceptadas mostram familiares e assessores tratando da ocultação da propriedade para disfarçar o vínculo direto com Wanderlei Barbosa.
As mensagens interceptadas pela Polícia Federal oferecem um retrato do funcionamento do esquema:
Após a prorrogação do estado de calamidade, Paulo César Lustosa ironiza o apetite por propina atribuído ao governador:
PC Lustosa: “Caba tá guloso, rsrsrs. Dinheiro.”
Wilton (irmão): “kkkk”.
Em outro diálogo, Paulo César define com empresários quem venceria uma concorrência para fornecimento de cestas:
PC Lustosa: “Manda as 3 propostas. Quem ganha?”
Paulão (Mari Alimentos): “Quem ganha?”
PC Lustosa: “Portinari. Pode ser.”
As mensagens confirmam que o processo licitatório era apenas de fachada.
Quando operações policiais começaram a mirar o fornecimento de cestas, Paulo César demonstrou apreensão:
PC Lustosa: “Olha isso.” [encaminhando notícia sobre operação policial]
PC Lustosa: “Esses caras vão tudo rodar aí, esse Joseph, esses malandros aí. Mas beleza, graças a Deus ce tá fora.”
Mensagens ainda mostram que a primeira-dama, Karynne Sotero, era diretamente associada ao Instituto IDEGESESC, usado para receber emendas parlamentares:
PC Lustosa: “Aproximação com Karynne. Isso aí é armação. Cláudia [deputada estadual] não é boba.”
O diálogo faz referência a parlamentares que buscavam se aproximar do governo destinando recursos ao instituto ligado à esposa do governador.
O relator do caso, ministro Mauro Campbell Marques, destacou a “contemporaneidade manifesta” dos atos, afirmando que os crimes não se limitam ao período da pandemia, mas continuam por meio de contratos ainda vigentes e da lavagem de capitais.
Segundo o ministro, há “fortíssimos indícios de continuidade delitiva”, confirmados por transferências bancárias, apreensões de dinheiro em espécie, documentos falsos e diálogos que mostram a combinação prévia de resultados de licitações.
O inquérito expõe um esquema articulado e milionário, em que recursos destinados a famílias em situação de vulnerabilidade foram desviados para enriquecer políticos e empresários.
As provas reúnem valores rastreados, saques em espécie, contratos simulados e diálogos comprometedores, que apontam para um sistema de corrupção entranhado na máquina pública.
Para o STJ, o caso justifica medidas duras, incluindo o afastamento do governador, devido ao risco de continuidade das práticas ilícitas.